*Texto que deveria ter sido publicado na última quinta-feira, mas tal não foi possível por motivos técnicos.
CONTOS MEDIATOS DE 1º GRAU MENOR
Capítulo 1 – Reencontros
Rever os colegas era sempre uma exercício de imaginação. Todos tinham novidades sobre suas férias, mas a beleza da mentira infantil fazia com que os fatos verdadeiros fossem ignorados. Esta postura persegue muito homem pelo resto da vida. Todo adulto conhece pelo menos um indivíduo que é o maior contador de histórias sobre conquistas de mulheres impossíveis, além de feitos inimagináveis, como voar no xavante do avô (esta estória realmente foi contada por um adulto que eu conheço).
Quando crianças, os homens ainda não vislumbram a mulher como um valor a ser ostentado. Nesta época, eles intimamente até reconhecem o fascínio que elas exercem, mas dificilmente expressam este sentimento, pois temem os coleguinhas em coro gritando: “tá namorando, tá namorando”. Na infância, isto inexplicavelmente intimida e ofende. Talvez porque pareça que os amigos estão dizendo que o apaixonado trocou de lado na recém declarada guerra dos sexos.
A imaginação infantil ignora as mulheres, pelo menos as de mesma idade, limitando-se a criar as aventuras mais mirabolantes. Um aluno dizia ter roubado sirigüela de um casa com três filas brasileiros que não conseguiram alcançá-lo enquanto corria. Outro teria praticado mergulho no fundo do mar e visto um tubarão. O terceiro relatava a captura de uma águia, enquanto passeava de avião.
Jubão tinha passado as férias em uma fazenda e realmente tinha aprontado um bocado com seus primos e primas. Mas as história verdadeiras pareciam fáceis demais. Então, ele se saiu dizendo que passou as férias no campo, e ficava explorando a região. Até aí, nenhuma mentira.
Em uma dessas explorações, ele se perdeu dos seus primos. Antes de reencontrá-los, descobriu um ninho de gavião e achou um filhote dentro. Ele cuidadosamente roubou o filhote, criou e treinou a ave durante o mês inteiro. No fim das férias, o gavião, de nome Silverhawk, acompanhava Juba nas explorações, pousado em seu pulso. Concluía a estória dizendo que, no feriado seguinte, ele iria ensinar Silver a atacar seus inimigos e suas caças.
Não vamos dizer que os outros acreditavam, mas, no meio de tantos mentirosos infantis, parecia haver uma espécie de código de ética que proibia que um duvidasse explicitamente das estórias dos outros.
A campainha toca. A professora entra em sala. Uma mulher franzina, pequena e simpática de nome Sônia. Logo, depois, chegando atrasado, mas sem aparentar preocupação com isto, surge na porta um garoto enorme. Juba já tinha notado que havia uma aluna de estatura superior a dele, mas ela não era tão maior. Por sua vez, este novo aluno era quase uma anomalia. Parecia um estudante da quarta-série. Os cabelos eram meio aloirados. O rosto pálido e de traços antipáticos. Era gordo, mas sua gordura aparentava ter a compleição de músculos. O sujeito, de nome Leonardo, entrou e sentou em uma das últimas fileiras.
O amor à primeira vista, se existe ou não, restou banalizado por sua constante afirmação em cantadas baratas. Já o ódio à primeira vista existe. Ele começa de forma sorrateira, disfarçando-se em afirmações como “não fui com a cara de fulano”. Não é um sentimento conclusivo, mas uma tendência. Se o odiado prematuramente não mostrar que esse sentimento é injusto, a antipatia se consolidará. E as crianças são especialistas em odiar, ou, pelo menos, em achar que odeiam.
Jubão não gostou de Leonardo. Ele entrou na sala como se fosse o dono da mesma. E, ao sentar, fez questão de empurrar com o pé, a cadeira do aluno que estava a sua frente. O nome deste era Denis, outro novato. Ele era provavelmente o menor e mais magro da sala. Possuía cabelos negros e lisos, cortados na forma de uma cuia. Os traços lembravam os dos orientais, apesar da pele morena. Havia se saído bem em seu primeiro contato com os veteranos. Na conversa fantasiosa que antecedeu a aula, prestou atenção nas mentiras de todos e se saiu bem com uma história de que teria incendiado cinco enormes escorpiões, usando o isqueiro do pai.
Ao ser empurrado, Denis olhou para Leonardo com uma cara fechada e, com força, recuou sua cadeira para o local em que antes estava. A aula se seguiu nesse jogo de empurra e volta que todos os alunos perceberam. Mas ninguém pediu a intervenção da professora. Jubão aprenderá em um filme que um preso jamais pode dedurar o outro. Ele adequava este dogma ao colégio e o instituía perante os alunos veteranos. Leonardo e Denis não sabiam disto ainda, mas, provavelmente por orgulho, não se socorreram de ninguém em suas implicâncias.
O recreio foi anunciado. Normalmente, os alunos saíam correndo para serem os primeiros na fila da cantina, ou ocuparem as quadras esportivas e os brinquedos do parquinho. Neste dia não foi diferente. Só que, quando todos saíram correndo, Leonardo deu uma rasteira sutil na perna esquerda de Denis e completou o ataque usando o ombro para empurrá-lo contra a parede próxima à saída da sala. Denis bateu com o nariz, o qual começou a sangrar.
Jubão saiu logo atrás de Leonardo. O punho cerrado. O sangue fervendo.