Confesso
Confesso que pequei
Pequei, pois amo minha mulher.
Que se há de fazer?
Amo.
Amo desde quando nos conhecemos
Amo desde o primeiro e ainda depois do décimo filho.
Amo desde o nervoso beijo de casamento.
Amo a jovialidade das rugas que sentia quando nela fazia uma carícia.
Não suportava vê-la de cara emburrada sem qualquer razão.
E, ao responder com um seco “nada” a pergunta sobre o que ela tinha
Ela conseguia atiçar a minha vida
Me fazia desejar ser capaz de preencher aquele nada que a entristecia.
Sinto saudades dos bons momentos que tive com ela
Não falo dos momentos de latente romance
Nesses qualquer apaixonado pode perceber a felicidade
Falo dos momentos "simplórios"
Da forma como ela passava manteiga no pão
Sempre virando a faquinha de uma lado para o outro
Procurando que ao final não houvesse qualquer sobra.
Falo da forma como ela reclamava de enjôo
Quando, namorados na varanda,
Eu insistia em acelerar o balanço da rede.
Falo da menina que, aos setenta anos
Ainda se divertia em ouvir o barulho das folhas secas estaladas pelos seus pés
“Não são mais tão ageis, mas ainda esmagam” – ela diz
Falo da mãe que fingia não estar preocupada com o filho que saia de casa
Que queria manter a força na minha presença para que eu não chorasse
Mas que não deixava de tremer e apertar minha mão com força
Sim, ainda amo a minha mulher
Aliás amo-a cada vez mais
Por isto, considere-me culpado
Culpado, pois sempre amei
Culpado, pois com ela de outra não precisei
Culpado, por ter renegado o machismo
E ter admitido
Que por uma mulher eu vivi e ainda viverei.